sábado, 28 de março de 2009

E lá Foi Mais Um Dia Mundial...



« (...) Hoje não seremos nós, gente do teatro, striptseauses da verdade poética, quem terá várias caras, que andam fechados os teatros, em ruínas, degradados, em perigo ou já foram demolidos - e poucos espectáculos se farão nesta noite.

Mas haverá almoços, discursos e jantares, debates e inquéritos.

E os hipócritas não seremos nós, que há anos (nós e os antes de nós, tantos) pedimos esmola, atenção, diálogo, intervenção, planificação, política aos políticos, certos que estamos de que o teatro não pode estar sujeito ao mercado, é área de intervenção do Estado, coração da língua, a tal língua que só no palco tem corpo e suor - e às vezes essa coisa única, grgalhadas e lágrimas.

Vamos mais uma vez, fingir que nos amam, que nos respeitam, almoçar, ouvir declarações de amor e pedidos de voto, vamos mais uma vez ouvir dizer que o povo sem teatro não é povo nesta cultura europeia, que faremos mais com menos (...), dar beijos, agradecer e dar abraços, vamos todos fingir. Com a surda raiva de saber que vivemos sempre assim, desprezados, nós os que éramos hipócritas por definição, escolha e parazer, desprezados por quem nada mais quer da palavra do que o silêncio dos outros.

Mas não somos nós os hipócritas originais, os que acreditam na palavra, no seu feitiço - e nela nos enredamos, palavra dos poetas, palavra dos políticos, palavra dos outros que todas as noites tornamos carne nossa - para não mentir à vida?

Como vamos encarar toda essa gente que vive à nossa custa (...) e nos vai vir abraçar, beijar, cumprimentar, prometer coisas que sabem tão bem que à primeira esquina, aliança política ou campanha eleitoral não irão cumprir? (...)

Engolindo para dentro a nossa miséria, a nossa tristeza, calando? Ou herdando o gesto sincero do Zé Povinho, esse rapaz de Bordalo? Pois não está, neste momento, toda a profissão teatral em Portugal a trabalhar de graça, com salários em atraso ou de miséria, por pura incapacidade das autoridades chamadas «culturais», burocratas enredados numa teia de dossiers impraticável e que sobre eles tende a desabar?

Não estamos a trabalhar fiado? E não foi o Zé Povo quem dizia «Queres fiado? Toma!», maravilhoso gesto, bela expressão da língua portuguesa?»


in, Jorge Silva Melo, Jornal Público, Sexta-Feira,
Dia Mundial do Teatro, 27/03/2009

Sem comentários: