segunda-feira, 16 de março de 2009

Res publica e Razão


«Esta força que fui eu parece ainda capaz de instrumentar muitas outras vidas, de erguer mundos» (1)

O nosso estado colectivo afigura-se a qualquer observador atento como de profunda crise, de uma natureza que se assemelha a uma decadência, não só económica, mas também espiritual. Parece fugir-nos o sentido de uma responsabilidade pública, alicerce de um governo onde aquilo que é humano tem de ser profundamente respeitado.
A democracia como forma de governo tem de se basear num código não de pessoas, mas de leis. O governo da causa pública, no sentido da palavra res publica como os romanos a legaram ao direito moderno necessita que quem governa, acima das suas opções, tenha ideias.
Ideias em que a dignidade humana seja respeitada. Os governantes só o podem ser porque têm propostas, soluções para a sociedade onde vivem. A preocupação humana, a solidariedade, a consciência colectiva têm de estar no centro das suas escolhas. Caso contrário vivemos já não numa sociedade de governo humano, mas de «técnicos» que aplicam formulários sem qualquer originalidade nem esperança de futuro.
O abandono dos cidadãos ao seu presente como uma inevitabilidade, de algo que já não pode ser transformado, a resignação da miséria é de um perigo evidente para a consistência social e para a felicidade das pessoas.
Nenhum governante o deve fazer, como o Srº Presidente da República há dias o fez e que mais uma vez Mário Crespo, na sua inteligente prosa de jornalista empenhado nos dá conta e que aqui reproduzimos.

«Ouvir dizer ao mais alto nível do Estado que não há soluções para o horror do desemprego é ouvir dizer que o Estado faliu. Meia centena de trabalhadores despedidos de fábricas em Barcelos e Esposende tiveram essa experiência de anticidadania. Numa visita, o presidente da República foi confrontado com um grupo de desempregados que empunhavam cartazes pedindo ajuda. Foi ter com eles e disse-lhes que não tinha nenhuma solução para os seus problemas.

Para um chefe de Estado é proibido dizer isso aos seus concidadãos e depois embarcar num carro alemão de alto luxo e cilindrada, acenando, apoquentado, aos que nada têm.

É isso que faz querer que os ricos paguem as crises.

Só se é chefe de um Estado para trabalhar na busca de soluções e encontrá-las. Sem isso não se é nada. Ser presidente em Portugal não é um cargo ritual. O presidente tem nas mãos ferramentas poderosas para influenciar o destino do país. Pode nomear e demitir governos, chamar agentes executivos e executores, falar aos deputados sempre que quiser, reunir conselheiros, motivar empresários, admoestar ministros e deve, sobretudo, exigir resultados. Ser chefe de Estado em Portugal inclui poderes executivos, e como tal, ter responsabilidades de executivo. Ao dizer que não tem soluções para as vítimas do descalabro que há três décadas estava em gestação no país onde ocupou os mais elevados cargos, o presidente da República dá à Nação a mensagem de que nem ao mais alto nível há o sentido da responsabilidade nem a cultura de responsabilização.

Ao dizer aos desempregados de Barcelos que nada pode fazer, o presidente diz a todo o Portugal que o Estado e o seu sistema não são mais do que um imenso círculo de actores autodesresponsabilizados que vão passando a batata-quente de uns para os outros. Depois destas declarações aos desempregados, o célebre letreiro "The Buck Stops Here", que Roosevelt tinha na sua secretária, não tem lugar na mesa de trabalho do presidente português. Com esse letreiro, que equivale a dizer que a batata-quente não passa daqui, Roosevelt lançou as bases da maior economia do Mundo das cinzas da grande depressão. Em Portugal, na maior depressão de sempre, o presidente diz que não tem soluções. Devia tê-las. Aníbal Cavaco Silva desde Sá Carneiro que participa no Governo. Dirigiu executivos durante a década em que Portugal teve a oportunidade histórica de ter todo o dinheiro do Mundo para se transformar num país viável. Mesmo com a viabilidade da economia questionada, Cavaco Silva, como profissional que é, regressa à política com uma longa e feroz luta pela presidência da República. Assumiu-se como a "boa moeda" que conseguiria resistir às investidas das "más moedas", na sua cruel pedagogia da Lei de Gresham, que foi determinante para aniquilar um governo do seu próprio partido e dar-lhe a chefia do Estado.

É um homem de acção impiedosa e firme, quando a quer ter.

Se o pronunciamento que fez de não ter soluções para esta crise foi uma tentativa de culpabilizar só o Governo, então foi de um insuportável, mas característico, tacticismo. Se foi sincero, então foi vergado pelo remorso, e anunciou que a sua longa carreira de político e de homem público chegou ao fim.» (JN online, 16 de Março de 2009)


(1) Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano,

Ulisseia, página 218

(Imagem - Nas Memórias materiais de uma Nacionalidade de outros Tempos,

Castelo do Queijo, na Foz do Douro)



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