sábado, 28 de fevereiro de 2009

Media e História


Há uma ou duas semanas a Sic apresentou uma mini-série chamada A Vida Privada de Salazar. O projecto apresentava um conjunto de relacionamentos amorosos que Salazar teve na sua vida privada.
Nada no projecto nos faz compreender as causas do comportamento de Salazar. A sucessão dos seus affairs aparecem sem se perceber a importância que cada uma daquelas mulheres realmente tiveram na sua vida pessoal. Mesmo limitando a este domínio a vida de Salazar, a fraqueza é assustadora. A narrativa organiza-se à volta da jornalista francesa, Christine Garnier, que tendo desempenhado um especial encanto em Salazar, não conseguiu chegar tão perto do coração do homem que governava autocraticamente o País, como Carolina Asseca.
Esta e Salazar estiveram noivos, mas não casaram. Não poderiam casar. O casamento teria sido a integração do homem simples, austero na aristocracia da época. Salazar recuou, evidentemente. Recuou pelo medo, pelo peso da aristocracia a que pertencia a família de Carolina, sobretudo pela lógica de manter um Poder Absoluto essencial na mitologia do regime em que o Presidente do Conselho de facto estava há muito casado, com o País. E este é o problema essencial que a série, A Vida Privada de Salazar, não soube compreender.
Não se pode analisar uma figura tão complexa como Salazar com esta separação do homem com o Poder e o modo particular como o organizou.
O Projecto em questão não foi capaz de explicar como é que um homem católico, austero, com uma vida profundamente solitária, manteve um conjunto de casos amorosos que nem os portugueses, nem os mais empenhados no combate político souberam em tempo real.
O Projecto não consegue compreender consistentemente porque Salazar nunca se decidiu pelo casamento e como um ex-seminarista conciliava a sua vida íntima com o pensamento católico. Aqui se concretizava mais uma faceta da sua relação com a Igreja, longe do simplismo com que muitas vezes é apresentado.
Se tivesse chegado a este patamar a série teria feito um serviço público de grande valor, esclareceria os portugueses daquilo que marcou a arquitectura do Salazarismo. As suas máscaras, aquilo que usou para representar a realidade, para reduzir o real ao manto de silêncio, de invisibilidade e que conduziu o País para o que conhecemos. Um Portugal fora de qualquer ideia nova, infantil na alma, imóvel no corpo, incapaz de viver com o resto do Mundo o seu próprio tempo.
Esta falta de inscrição na história, esta ausência de debate de ideias e de informação esclarecida de que a mini-série dá provas é ainda, na sombra, uma das heranças de Salazar. Herança ainda muito presente num País ainda pouco rigoroso, comodista com o seu passado e facilitista nas suas opções de cidadania.
A série nunca vislumbrou a dupla encenação de um homem entre os espaços públicos e privados, ente ele, o herói messiânico e o espectáculo, entre a humildade e o orgulho, entre o engenho e a mediocridade.
Não é pois de espantar que em Portugal seja tão difícil fortificar uma consciência colectiva que compreenda de que modo pode criticamente construir o presente. Nada mais falso do que apresentar Salazar como uma figura simples, com pouca densidade. Mesmo quando o mal parece conduzir os Povos é presiso saber reconhecer as qualidades dos que apostaram em limitar o futuro. Apenas de uma forma pedagógica se pode preparar o futuro.
Existem em Portual muitos historiadores capazes de explicitar estas ideias. Já vão existindo livros que igualmente exploram esta temática. Recomenda-se a sua leitura a quem este tema interessar, em especial, Felícia Cabrita, Os Amores de Salazar, da Esfera dos Livros e Máscaras de Salazar de Fernando Dacosta, da Casa das Letras. O futuro agradecerá vivamente uma melhor compreensão daquilo que nos forma como povo.

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